Via Oral
Um blog sobre textos, aforismos, arte, literatura, arquitetura, humanismo e outras coisas para as quais ninguém dá a mínima. Escrito em encenado nas poucas horas vagas que a atividade de ADA (Arquiteto Doméstico Administrador) permite.Um espaço perfeitamente adequado à muita conversa fiada, mentiras acreditáveis, ranhetices, rupturas, causos, crônicas e, sobretudo, área disponível aos amigos, uma turma cheia de gaiatices mas que eu adoro. |
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sexta-feira, julho 30, 2004
Depois das horas
Só.
Fechou a porta e entrou, arrastando os pés cansados no chinelo gasto. São velhos, todos: a casa de um só cômodo, o chinelo e ele. Principalmente ele, que é quem importa. Lá fora, algumas risadas modernas, de um tipo que ele nunca ousou experimentar na juventude. As pessoas não sorriem passados nem futuros. Só presentes incertos. Talvez por isso, a estridência das risadas nervosas, barulhentas e desconfiadas. Risadas que suspeitam da própria alegria...
Lá dentro, o velho debulha um pacote de jantares. Macarrão com coisas, garrafas de sonhos, revistas de prazeres. Armas contra a solidão que espreita as noites. Um rádio barítono recita mazelas musicadas para uma tv miúda, que cospe imagens em p&b. São as companhias do homem, armas. E a as risadas lá fora, riem, desgraçadamente.
A noite cresce, abafa uns sons, amplifica outros. E o homem viaja só, em lembranças, fica atento. Vislumbra todo o seu mundo, que cabe na única janela do cômodo. A lua alta, agora nada mais é, que lua, sem serventia. Nem iluminar direito ela sabe mais, desde que, há muito, postes espetam a rua. Às lembranças também não serve, nem mais à poesia, como nos tempos novos do velho.
Em algum lugar, por ali, alguém goza. Ele ri. Que tanta sem-vergonhice desse povo, tão diferente das minhas, aquelas sim, safadezas das boas, melhores porque eram às escondidas, desobediências quase criminosas, e por isso mesmo de gozo maior, muito maior.
Agora não.
Goza-se até na rua, de dia, na frente de qualquer um. E aí não tem prazer, e o cabra tem que fazer besteiras outras, que é roubar, matar, estuprar e tudo que seja o caso de ser errado, porque não tem jeito mesmo não: o errado, no fundo é o que faz aumentar o gozo - filosofa.
Enquanto tudo, a noite late, cada vez mais perto.
O rádio murmura um evangelho para a tv, que chia cinza. Já é depois de horas, essa hora. Até a tv já morreu, e o velho nem se dá conta. Embebido em sonhos e tecendo as próprias nuvens de cigarro barato, pensa saudades, criando vidas, que é pra não dormir sozinho, porque o sono já está ali, esperando.
Solidão.
Daqui a pouco a janela se fechará. A tv, já morta, será extinta.
Como sempre, só o rádio acordado, tocando o passado, atiçando a memória alcoolizada.
E a solidão ali, em pé, frente à porta, apenas olha, esperando o homem acordar, como sempre faz, todo o tempo.
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