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terça-feira, julho 20, 2004
O ponto mais cardeal da minha vida
Cada um tem uma direção, um sentido na sua vida um lugar pra onde apontar sua nau. Muita gente até hoje procura seu norte, seu rumo, o caminho definitivo. Eu procuro o meio, porque o caminho eu já sei: o nordeste, rumo que minha vida tomou desde cedo, pois em minha aurora, o sol nasceu nas praias pernambucanas, nas enchentes do Capibaribe, no leito seco de rios que experimentaram as terras do sertão um dia. É lá que está cimentada a pedra fundamental de cada uma das construções do que eu sou, dos meus sonhos aos meus medos; dos meus desejos, às grandes conquistas que hei de ter ainda. Vêm de lá, os cheiros do meu tempero, a cor dos meus quadros, as notas da minha música, as idéias maiores dos meus projetos. As soluções pra vida a gente traz da infância, só dela, e de nenhum outro lugar. E quando a gente cresce, é so pra melhorar o que já sabe. Continuo um infantil nordestino, parte de um povo que parece ter nascido pra ganhar o mundo, sem perder o seu caminho, sonhando que um dia, aquela terra vai florir na primeira chuva, que a flor vai crescer na segunda e, se chover de novo, ele volta pra casa de vez.
Foi em 1971, quando retornei com a família para a São Paulo natal, que pude perceber melhor aquele povo que deixara, os amigos, as lembranças. Aos 15 anos, num ginásio frio da zona sul da cidade, entendi como se vê um nordestino nesse país. Me senti como se sente a maioria dos emigrantes, sob olhares e ações dos que se julgam superiores. Fui negro, fui indio, fui pobre, fui feio, subdesenvolvido, ignorante e estúpido, tudo de uma vez só, e para todos os que conheci na sala de aula, até mesmo para professores, acostumados aos olhos azuis das cabeças louras, aos nomes sonoros, escritos com k, y, w, de pronúncia complicada e que lá no nordeste a gente dava logo um jeito de sincopar, por que lá tudo era mais simples, a começar pelo povo. A professora de português quis me expulsar de sala. A de matemática, lembrou-me meu devido lugar, quando clamei por alguma justiça, nem lembro mais qual; a de história, só me deu atenção quando dela discordei, sobre questões de Idade Média e da decadência americana, que ela insistia em afirmar. Bombardeado de todo lado, sentindo na alma a intolerância das gentes com gente do meu próprio país, desdobrei-me ao avesso, só para mostrar a todos que eu, aquele "paraíba", com cara de filhote de "cruz-credo", era tão bom quanto eles, descendentes diretos de italianos, ingleses, espanhóis, portugueses, japoneses, libaneses, alemães... E eu, descendente mais-que-direto de um sertanejo, que pegou na enxada aos sete anos (e parou de estudar na 5ª série, por não poder comprar um par de óculos), não queria ganhar de ninguém; empatar já estaria de bom tamanho.
E lá fui eu: rezei Ave Maria em francês, "entortei" todos na quadra de futebol-de-salão (eram descendentes de estrangeiros, lembram?), dissertei sobre "A noite dos mil anos" na aula de história, criei incríveis trapizongas para a feira de ciências e, na conquista da professora de português, sangrei e lacrimejei na escrita, até que, por fim, consegui emocioná-la. Em inglês fui sofrível - imagina um inglês com sotaque pau-de-arara... Mas ao fim, conquistei o sul do país; ao menos aquela pequena parte do sul do país, que ia da portaria controlada da escola até a sala de aulas. Implicâncias iniciais se converteram em admiração e respeito; e os não amigos, ora, esses, eram inimigos de si mesmos e deles nada sei. Sei apenas que até hoje, sempre que vou a São Paulo, visito alguns, que me conquistaram tanto quanto eu a eles. Vitória, afinal, da vida. Mas, da minha vida apenas; nunca jamais a de milhares e milhares de retirantes, que perderam sua história, sua alegria, sua dignidade, sua pátria. E é aqui que paro minha história, para entrar em outra, que fecha essa. Mas isso fica pro próximo número.
Fotografia de uma família típica nordestina (http://www.araujo.eti.br)
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