Via Oral


Um blog sobre textos, aforismos, arte, literatura, arquitetura, humanismo e outras coisas para as quais ninguém dá a mínima. Escrito em encenado nas poucas horas vagas que a atividade de ADA (Arquiteto Doméstico Administrador) permite.
Um espaço perfeitamente adequado à muita conversa fiada, mentiras acreditáveis, ranhetices, rupturas, causos, crônicas e, sobretudo, área disponível aos amigos, uma turma cheia de gaiatices mas que eu adoro.
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quarta-feira, julho 14, 2004

O retorno de Hamellin

Diz-se que, numa certa tarde, fim de dia, surgiu na cidade, não se sabe bem vindo de onde, um velho bibliotecário que, com cara de louco, exibia velhas partituras, dizendo terem pertencido ao flautista de Hamellin. Andava pela urbe inteira e, sempre que parava, numa calçada ou praça mais movimentadas, puxava de um saquinho plástico, desses de supermercado, uns rolinhos de papel amarelado, de onde pulavam claves, mínimas, semínimas e colcheias, que ele solfejava com algum vigor, para uma platéia espantada. Música estranha, a alguns incomodava tanto, que estes não a suportavam e corriam, fugindo como se fossem pois, diabos, e a canção, a cruz. A outros não fazia efeito; e ficavam estes ali, contemplando aquele velho engraçado que cantava e dançava ao som da própria voz, como uma chama que se contorce em fulgor, à dor do combustível consumido.

"Vade, vade mal, que nossa dor fomenta;
Corre as ruas da cidade, perseguido pela turba...
Voltemos à paz sob tua grata ausência
Esconde-te à toca, deixa em paz nossa terra...
Rogues a Deus para que em nós nasça a clemência..."

Musica estranha, sob versos tão esquisitos, e acompanhada apenas pelo soprar de uma velha e suja flauta de bambu, num estribilho que, aos poucos, ia se fazendo ouvir, mais e mais, cantada pelas pessoas, que paravam de falar umas com as outras, esqueciam seus assuntos, só pra cantar...

"...Vade, vade mal, que a nossa dor fomenta..."

E conta-se que, em noites seguintes, a cidade toda cantou e não dormiu, feliz e esperançosa. E os que não cantaram, também não dormiram, rolando na cama de um lado a outro, incomodados com a peculiar melodia. E dias se sucederam. E as cidades por onde o velho passava se inflamavam em cantorias, a pregar uma nova era, sem fome e feliz, num sonho sonhado por todos e cantado à luz da lua, uivado até. E que continuava a incomodar - e muito - àqueles todos que não dormiam, mas que também não cantavam, mas sofriam pela sonora flauta do bibliotecário e pela intrigante composição de Hamellin. "Mas não era para espantar ratos?" - perguntava um; "Acho que era para dar fim aos ladrões...", dizia outro; "Não, apenas para deter os corruptos" - berrava um terceiro, enquanto todos se entreolhavam, com certo ar de acusação.

E nasceu, finalmente, o dia em que todos os insones não cantantes se reuniram, sonolentos e cansados, clamando direitos ao sono dos justos (segundo seu próprio senso), tramando o fim do velho bibliotecário e o conseqüente silenciar de sua perigosa cantiga. E eram tantos os insones não cantantes, e tão parecidos entre si e entre todos, que, em uníssono e gritando "bravo", "oba", "muito bem", "isso aí", selaram de apoios à proposta de simplesmente adquirir, por compra, as partituras de Hamellin, ao valor que fossem, até o limite de todo o dinheiro que tivessem. Fariam mais, se fosse o caso, mas comprariam seu descanso, sua paz na terra.
E foram todos oferecer o milhão, ao que ouviram um grosso "não"; disseram "que tal um bilhão?"; e a flauta tocou "nem pensar". Chegou-se à casa do trilhão, do quatrilhão, do centilhão... E o homem, nada...

"Mas o que diabos ele quer", um insone indagou. "Vamos lá saber" - disse alguém, sob o aplauso de todos.

- Senhor, digo..., Excelência... Vossa Suntuosidade, se nos permite a audácia, Majestade, gostaríamos de saber, de Vossa Reverendíssima Sapiência, o que nos é possível oferecer à Sua Magnânima Pessoa, no intuito interromper-se, ainda que provisoriamente, digamos, por uns 30 anos, a maviosa sonoridade à qual se expõe em delírio esse povo ingrato, que para nós nem mais dirige olhar?

Ao que respondeu o homem, num sorriso:

- Alcem-me ao poder... Deixem-me conduzi-los a todos, ao som fluídico e inebriante desta flauta; com esse notável talento para bajulação que a mim demonstram, EU os colocarei nas alturas, onde jamais imaginaram que poderiam estar, livres de qualquer infortúnio, e para o resto de suas vidas...

- M-Mas... Meritíssimo, Vossa Majestade Reverendíssima não entendeu... Nós não agüentamos mais essa melodia terrível... nosso desejo maior é o de quebrar essa flauta, rasgar as partituras, incinerar tudo e, se possível, prender e arrebentar os que insistirem em cantá-la... Assim não dá, assim não é possível...
- Não se preocupem com a música - disse o líder. "Aqui está..."
E puxando um punhado de tapa-ouvidos do bolso, todos em cor carmim, pôs-se a distribuí-los entre os insones presentes, desejando que todos tivessem uma reparadora noite de sono, enquanto pensavam na proposta feita.
Oh, Vossa Magnanimidade, que maravilha não ter que escutar tão maledicente canção... Mas, o que significam estas letras aqui escritas, "P" e "T"...?
- Paz e Tranqüilidade. Não é isso que procuras?

E assim foi feito. Com o apoio dos não cantantes, o bibliotecário foi eleito por margem esmagadora de votos, logo no 1º turno. A população, em júbilo, cantou dias, semanas, meses a fio. No palácio, todos usam tapa-ouvidos, apesar de quase nunca se escutar a velha música. E até hoje, ninguém jamais descobriu por quê, os que os governam, jamais escutam seus pedidos...

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