Via Oral
Um blog sobre textos, aforismos, arte, literatura, arquitetura, humanismo e outras coisas para as quais ninguém dá a mínima. Escrito em encenado nas poucas horas vagas que a atividade de ADA (Arquiteto Doméstico Administrador) permite.Um espaço perfeitamente adequado à muita conversa fiada, mentiras acreditáveis, ranhetices, rupturas, causos, crônicas e, sobretudo, área disponível aos amigos, uma turma cheia de gaiatices mas que eu adoro. |
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quarta-feira, julho 28, 2004
Totó Ramalho
Algumas histórias verdadeiras são tão extraordinariamente anômalas, que mais se parecem com mentiras. É, sem dúvida, o caso dessa. Mas, como vocês já me conhecem e sabem bem quando relato uma fantasia e quando falo de realidades, tenho, aqui, uma enorme chance de não ser desacreditado. Muitos já sabem que minha família tem origem nordestina. Meus pais se conheceram numa festa na casa de Antônio Ramalho no bairro pernambucano de Cordeiro, onde meu pai entrou como "convidado" de um amigo. Antônio Ramalho era alfaiate em Recife, e afamado, fez muita roupa para famosos locais, entre eles o então governador Miguel Arraes, antes que o golpe de 64 o destronasse do Palácio das Princesas. Totó Ramalho, como era mais conhecido, era uma pessoa inacreditavelmente boa. Pai de oito filhos, acolheu minha mãe, sua prima em primeiro grau, e fez dela uma costureira profissional ensinando-lhe o ofício de "calceira", na conhecida "Alfaiataria Ramalho". Isso, lá pelos idos de 1950, era um feito para a independência feminina, principalmente numa cidade nordestina. Mas, voltemos ao Totó. Festeiro como poucos, os bailes antológicos na casa do Cordeiro marcaram época. Entre os da família, até hoje se comenta sobre uma ou outra noitada, onde alguém conheceu outro alguém e acabaram se casando, como ocorreu com os meus pais. Mas, se por um lado a alegria e a competência conquistavam admiração de muitos, outros tantos cultivam-lhe ódio mortal. E não era outro o motivo, senão sua sinceridade exacerbada e que o conduzia a comentários imprudentes, inconvenientes e de inteira, absoluta e absurda indiscrição. Papas na língua, jamais. Nada o detinha, nada o impedia de opinar, sobre o que quer que o incomodasse, onde quer que estivesse, fosse com quem, ou de quem fosse. E foi assim que, numa viagem com meu pai à Vitória de Santo Antão, cidade famosa da zona da mata pernambucana, Totó chegou ao ápice da sua capacidade de proferir impropérios e inadevidos comentários, soltando a grande campeã de todas as suas indiscrições. Lá pelos anos de 1966/67, como era o único representante pernambucano de um grande fabricante paulistano de tecidos, "seu" José Laurindo, meu pai, tinha a incumbência de visitar os clientes das principais praças do estado. Numa de suas idas à Vitória de Santo Antão, levou Totó Ramalho como acompanhante, sempre recomendando ao velho amigo que se mantivesse discreto, preferencialmente calado, já que tão bem o conhecia. A visita da vez era a um respeitado lojista local, grande comprador e com planos expansionistas para a região. Encontro correndo solto, movido alguns goles de cachaça de qualidade, carne-sol e outros petiscos deliciosos presentes na casa de qualquer bom nordestino, quando o anfitrião resolve mostrar a intimidade de sua casa, já que houvera concluído uma ampla reforma, tornando sua moradia bastante atraente e confortável. Percorreu-se todo o lugar, com meu pai tecendo sinceros elogios à obra, que transformara um velho casarão numa habitação moderna e agradável, panorama ao qual Totó acompanhava em suspeito silêncio, transportando seu corpanzil com as mãos às costas, como um duro fiscal de órgão público. Lá pelas tantas, respirou fundo, fez cara de pouco gosto e soltou: - É, meu amigo... tá tudo muito bem, mas eu vou lhe dizer uma coisa: Essa sua casa, na frente da casa de Zé Laurindo, é uma boa merda... Voltou pra casa debaixo de todo tipo de xingamento que meu velho pai foi capaz de lembrar.
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