Via Oral


Um blog sobre textos, aforismos, arte, literatura, arquitetura, humanismo e outras coisas para as quais ninguém dá a mínima. Escrito em encenado nas poucas horas vagas que a atividade de ADA (Arquiteto Doméstico Administrador) permite.
Um espaço perfeitamente adequado à muita conversa fiada, mentiras acreditáveis, ranhetices, rupturas, causos, crônicas e, sobretudo, área disponível aos amigos, uma turma cheia de gaiatices mas que eu adoro.
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sexta-feira, outubro 22, 2004

Como havia prometido ao meu amigo Patolinus, um conto de realismo fantástico. Na verdade, uma crítica aos pais que somos, por nos distanciarmos de nossa infância, da infância dos nossos filhos e, por isso mesmo, nos distanciarmos dos próprios filhos. Na nossa prepotência de "sabermos mais porque somos adultos", provocamos tristezas, frustrações, matamos fantasias. Estejamos, portanto, sempre alertas.


O presente


- Eu quero esse, pai!
O menino foi logo abraçando o boneco de pano, encolhido na prateleira da loja.
- Esse é horroroso. Põe isso lá, que está todo sujo e empoeirado. Vai atacar sua alergia - bradou o pai, olhando um cachorrão de pelúcia, que mais adestrado que o filho, aguardava na vitrine.
- Mas eu quero ele, pai... ele ta vivo!
- Não senhor, mocinho. Se quiser, leva esse aqui ou não leva nada; porque eu não vou ter paciência com manha de criança, não. Tá vivo... Que maluquice... - resmunga o pai.

O pirralho, triste, se perguntava sem entender, por que não poderia levar o bichinho: era menor, devia ser bem mais barato e era mais bonito. E, melhor que tudo, estava vivo! E se a irmã tinha aquele gato chorão, ele também poderia ter um bicho de verdade. Será que ele come? Se não comer, não suja a casa - pensou.
Chorou de tristeza e de verdade mesmo. E nem era pra convencer o pai. O bicho na prateleira, sujo, brinquedo mendigo, mantinha um sorriso tolo, diagonal, omisso. Tinha cara de um animal engraçado, meio desengonçado que o menino já vira em algum programa de tv. Não sabia o nome daquele animalzinho, mas sabia que o queria. Porque sabia que o animal também queria estar com ele, conversar e brincar com ele, isso sim, com certeza.
O pai, pagando a compra e a vendedora, cúmplice da criança, enfia na sacola o boneco de pano. Afinal, ninguém iria comprá-lo mesmo - conclui.

Caminho de volta, filho calado, de tristeza e raiva. Queria mesmo aquela coisita. Gente grande não entende nada, não sabe mesmo do que criança gosta. Como é que se pode gostar desse bichão feioso? E ele não tá vivo. Não tá morto também, porque nunca viveu e nem nunca vai viver - pensava.

A casa chegando, portão, escada, a sala, presentes e papéis coloridos no chão.
De susto e alegria, o grito do menino:
- Olha, pai! O bichinho veio também! Meu bichinho veio...! E num impulso, abraça o boneco, aperta-o contra o peito, com todo o amor do mundo.
O pai olha a cena, vocifera e num impulso maior, arranca o bicho das mãos do menino:
- Moleque safado, roubou essa porcaria da loja, não foi???!! Desde quando eu te ensinei a pegar alguma coisa sem permissão???

- Nããããoo, papai... Eu juro que não peguei nada...! Eu pensei que você que pôs ele lá, de surpresa...

O pai, transtornado, diante de todos, grita, bate, atira o boneco na parede com toda a força de sua raiva. Sai reclamando, bufando, batendo a porta do quarto. Iria devolver o boneco na manhã seguinte.
***

Banho tomado, o pai, de volta à sala, com jeito de limpo. Mãe e filha, mudas, estupefatas, olhares marejados, num quase-pavor.

O menino, com lágrimas nos olhos, com o bicho molengo na mão, boneco inerte que perdeu o sorriso.

Um filete vermelho escorrendo da boca de pano.

Num soluço, toda a dor do mundo eclodindo de um pequeno peito, que ainda não compreende direito tanto sofrimento:
- Pai, você matou ele...

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...

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