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sexta-feira, outubro 15, 2004
Morreu Sabino. Morreu sabendo. Sabia como poucos, que cada criança é como um novo amanhecer, é como um novo dia para a humanidade. Sabia que podemos aproveitar cada dia para brincar, agradecer, ou não ligar pra ele, vivê-lo mecanicamente até que a noite chegue; e no dia seguinte podemos nem lembrar se o dia anterior foi de sol ou de chuva. Crianças também são assim. Se as esquecemos, chega a noite e a colocamos pra dormir, sem que tenhamos a menor idéia se durante o dia elas sorriram ou choraram. E no dia seguinte, isso tudo já passou, foi mais uma oportunidade perdida. Foi-se o meu querido Fernando Sabino. Sabia quase tudo. Mas dessa história, ele não sabia que foi inspiração.
Uma coisa
Fernadinho chegou e foi logo pro quarto. Derramou a caixa de brinquedos no chão, procurou alguma coisa que não encontrou, foi nas gavetas, no armário e nada. Desceu, foi no móvel da sala e depois de alguma bagunça foi até a estante. Quando saiu, a arrumação era outra. O pai olhou por cima do jornal, por cima dos óculos, olhou pra mãe e, juntos, olharam em silêncio pro filho, que já tomara o rumo da garagem. Ao longe, ouvia-se o barulho de quem procura algo, com a paciência e desenvoltura de seus seis anos de idade. O barulho de vidro quebrado fez o pai largar o jornal e caminhar até onde, pouco antes, era um espaço arrumado.
- Quebrou...
- É, eu sei disso - disse o pai, sério, mas sem o rancor dos pais dos outros.
- Posso saber por quê o senhor entrou em casa como um pequeno furacão, e sem nem falar conosco já deixou trabalho para o resto da semana? - indagou.
O pequeno, olhando o pai quase que pelas pálpebras, de tão desconfiado, respondeu:
- É que estou procurando uma coisa...
- E que coisa é essa, tão importante?
- Ainda não sei.
- Como não sabe?! Então você bagunça tudo, sai quebrando a casa toda e não sabe nem o que está procurando? - espantou-se o paciente pai.
- É...
- Ah, é??? - o pai, meio sem argumento.
- Humrrum... - acenou Fernandinho.
- Muito bem mocinho: o senhor vai arrumar tudo, varrer esse vidro quebrado e tomar banho para almoçar. AGORA! - recompôs-se o pai, que deu de costas e voltou ao jornal.
- E aí? - perguntou a esposa, confiante em que o pai havia conseguido controlar aquela "fúria da natureza" que era o seu filho.
- Tudo resolvido - ele respondeu.
- Mas, afinal, o que é que ele está procurando tanto? "Ainda não sabemos", diz o pai com alguma ironia.
- Ora, como "não sabemos", ou melhor, "quem não sabemos"??? - espanta-se a mãe.
- Ele e eu, oras. Aliás, agora, você também! - responde o pai, num sorriso meio cínico e maroto. A mulher, disfarçando o "meio sem-jeito", inclinou a cabeça, como se isso a ajudasse a entender melhor aquela resposta estapafúrdia, raciocinando com os lábios. Não adiantou nada, e ela deixou pra lá, rotulando os dois, silenciosamente, de qualquer coisa parecida com "malucos".
O resto do dia passou e Fernandinho continuou procurando, agora com algum cuidado e um pouco menos estardalhaço, porque chamar a atenção dos pais havia se revelado como um grande risco. Já à noite, com todos jantando sob o som do jornal da televisão, e Fernandinho mais tranqüilo, o pai perguntou:
- Achou?- Ainda não - respondeu o guri.
- Mas vai achar, não se preocupe - incentivou o pai, com um sorriso leve, de quem está brincando. A mãe, sem saber se perguntava algo ou não, optou pelo silêncio, só pra não trair a enorme curiosidade de toda as mães; e também pra não se passar por tola, pois, com toda certeza era o que eles queriam que ela fizesse. No final, não diriam nada e ela ficaria ali, com cara de boba e os dois sorrindo disso, divertidos. Ficou quieta.
Estranhamente o jantar transcorreu sem nenhum tumulto. Fernandinho deixara quase a metade da comida no prato e parte da outra, não consumida, na mesa. Num salto, foi direto pro quarto do meio, espécie de escritório, depósito, biblioteca e uma muito pretensiosa sala de estudos, justo pra ele, Fernandinho. Abre aqui, mexe ali, derruba acolá, e nada aparecia que servisse ao menino. E enquanto o rebuliço corria solto no cômodo, os pais resolveram que iriam ajudar na busca do filho, com a mãe ainda desconfiada de que, diante dos dois, ainda iria passar por alguma situação ridícula.E em pouco tempo todos procuravam. Primeiro a mãe aparecera com uma velharia qualquer, inservível. Depois, o pai, exibindo uma taça de vice-campeão de qualquer coisa, ambas rejeitadas pelo garoto. Nada servia e ninguém sabia mesmo o que procurava. Até que Fernandinho esclareceu: a professora havia pedido que cada aluno trouxesse de casa alguma coisa diferente, que nenhum colega tivesse; algo exclusivo, pessoal, só pra mexer com a cabeça das crianças. Os pais do "furacãozinho" aliviaram. Agora sim, tudo fazia sentido e eles sabiam o que iriam procurar. E começaram a chafurdar os armários, no mesmo "estilo" de Fernandinho: não ficava pedra sobre pedra. Surgiu de tudo: das fotos do casamento até o primeiro sapatinho do filho; de cartas de amor a "lembranças" surrupiadas de um motel. Mas nada, nada servia. E foram procurando noite adentro.
Já não se agüentavam mais em pé, quando Fernandinho parou e ficou olhando para os pais, que insistiam em não achar nada. Olhou, observou e, depois de algum tempo, disse:
- Podem parar de procurar e vão dormir, porque eu já achei o que procurava...
- Achou??? Mas como?? Mostra... - disse a mãe.
- Amanhã eu falo - respondeu o pequeno. Vão dormir.
Acostumados com as maluquices do filho, os dois cambalearam rumo ao quarto, enquanto Fernandinho, acompanhando-os com o olhar, sorria o seu melhor sorriso. Aquele amor dos pais - sabia bem - só ele tinha.
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Se medicaram:
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