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domingo, novembro 28, 2004
Minha amiga e escritora, Marcela, do blog Maré, grávida de oito meses e vinte e oito dias, enviou-me, meses atrás, um texto magnífico de Leonel Moura, intitulado "Homens-Lixo". Marcela ficou conhecida na blogosfera por sua postura de diferenciada no universo dos deficientes, ao qual pertence desde certa idade. Está mais do que na hora, no entanto, de ser ela reconhecida como a escritora talentosa que é, cuja consciência social explica e justifica a sugestão que me foi encaminhada.
Marcela Vaz agora saberá que esse texto foi base de um trabalho em nossa pequena comunidade espírita, cuja instalação recebeu elogios de todos. Aqueles que participaram do evento agradecem-na, comovidos, pela oportunidade preciosa que o simples repasse de uma mensagem eletrônica lhes proporcionou. Percebemos que um carinho, sem nenhuma pretensão maior, pode conduzir-nos muito, muito longe, para confins inimagináveis rumo ao nosso desenvolvimento humano.
Abaixo, o trecho que me foi enviado. Leiam-no com atenção. São palavras graves, absolutamente prenhes de verdades incômodas e para as quais não poderíamos ter conduzido a melhor uso. O texto completo, disponibilizado na Net, pode ser acessado pelo endereço anotado no fim da mensagem. Façam bom proveito.
Os homens-lixo - Leonel Moura.
Na visão das antigas colônias de leprosos, encontramos uma insuportável imagem da miséria humana, figuras envolvidas em trapos empapados de sangue, proscritos do convívio em comum e atirados para um lado qualquer, longe de tudo e desde logo da vida digna.Ocupando uma parcela do território, reconhecido, mas escondido da vista e da moralidade pública, o leproso realiza idealmente o programa do imaginário abjeto. Pois nele se conjuga a dupla condenação: a da natureza na decomposição do corpo vivo, e a da humanidade, na recusa da pertença social.Mas hoje a colônia dos leprosos ocupa praticamente o globo inteiro, nessa nova espécie de homem que se encontra mais perto do lixo do que de uma qualquer condição humana.Verdadeiros homens-lixo, que vivem dentro de esgotos e se alimentam de detritos nos depósitos municipais - numa descida às mais negras profundezas do asco e da inumanidade, ilustram o quotidiano de todas as cidades do planeta e fazem de cada novo êxito científico, econômico, cultural ou pessoal, um detalhe patético num cenário de uma crise irremediável.Tudo o que era limite, da decência, da dignidade, da doença, da loucura, do abandono, já foi há muito ultrapassado nas grandes urbes do nosso mundo e nesses campos de refugiados que invadem as orlas e os desertos.E, nesta celebrada incapacidade de solucionar a desumanidade vigente, todos nós, cada um à sua maneira, vamo-nos transformando em homens-lixo, na perda da última camada do ser que nos faz humanos.Para a sociedade contemporânea, a exclusão é vista como catástrofe natural. Epidemia que atinge uns e aparentemente poupa outros, numa seleção devedora das crenças, mais do que da condição social. Os excluídos constituem uma intromissão visual nascida diretamente da contingência.
Como uma chuva que cai quando lhe apetece, servem à precariedade da existência. E aos olhos das vidas correntes, apresentam-se como símbolos, ruínas, deficiências, a caminho de um estatuto não-humano. São entidades supérfluas, cuja única utilidade é de natureza exemplar, animando o destino dos homens-correntes e a tênue alegria das vidas remediadas.Sem pertença, política e social, não há humanidade. A exclusão resulta antes de tudo numa expulsão da própria condição humana, na banição irremediável, à rota da leprosaria.Vita sanctorum socialis est, dizia Santo Agostinho. Fora da pertença nada de humano existe. Não há humanidade, sem comunidade.A experiência da exclusão não é transitória, nem resulta de uma suspensão momentânea ou sobressalto acidental. A exclusão é a condição definitiva de um ser atirado para um lugar exterior à vida comum. Só se sai dela com um renascimento.O excluído é na verdade um pária, um estrangeiro sem país de origem, um leproso condenado ao ostracismo. Sem retorno.Porque o eu se define na relação com os outros num espaço comum, a exclusão torna alguém estrangeiro de si mesmo. O homem-lixo já não se reconhece como humano e entende-se como obstáculo do progresso de todos. Mendiga a dupla necessidade. A do estômago e a da culpa, pedindo o pão e o perdão.Daí a surpreendente falta de raiva dos mendigos. Não lutam pela vida, mas pela sobrevivência. Não reivindicam a pertença, mas tão só a permanência.
(Excertos de Os homens-lixo, de Leonel Moura, Edições Fenda - Lisboa; texto integral online http://www.lxxl.pt/babel/biblioteca/lixo1.html na edição de outubro da Babel - revista eletrônica.)
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quarta-feira, novembro 17, 2004
A outra questão
Antes de tudo, me desculpem. Desculpem pela desatualização do espaço, mas é que, para um arquiteto vivente no ócio do lar, quando pinta algum trabalho relevante, assim como a reforma de um banheiro na casa do motorista da vizinha, ele vai voando e esquece de tudo. Quase até dos amigos amados. Lei da sobrevivência, lei do cão, muito em voga nesse país.
Queria bem falar de uma coisa interessante que descobri, nas longas viagens que andei fazendo pra dentro de mim, quando estive em vias de bater às minhas costas a porta principal da casa arrastando malas em direção a lugar nenhum, que é pra onde se vai quando almas conhecidas se despedem, perdidas de si. Como muitos sabem, andei meio sem rumo com a idéia besta da separação, sugestão quase ordinária de Denise e que, fosse eu menos desobediente, a teria acolhido de chofre.
Noutro dia um amigo lamentou sua vida, numa leve menção à distância entre ele e sua companheira, aumentada pelas noites à frente da telinha, mal que aflige 9 entre 10 estros-homens da blogosfera.
Creio ser este um mal comum aos casais cansados, um première symptôme de que as coisas andam de mal a mais mal ainda, dans le mariage.
Somos sempre observados, nós os homens. As mulheres nos observam numa relação absolutamente inversa à atenção que dispensamos a elas. Isso, porquê nós não criamos nenhuma expectativa maior com relação à nossa companheira. Esperamos apenas que elas sejam boas esposas, boas donas-de-casa, ótimas mães (muitos de nós as temos como a continuação da relação materna original...). Quanto à nossa vida, as expectativas mais comuns são as do crescimento profissional e o conseqüente acúmulo de riquezas, a criação do filho homem nos padrões clássicos da masculinidade, o futebol, as cervejadas das sextas-feiras, o futebol, as mulheres do escritório, das ruas, dos vizinhos, dos amigos, o futebol, o carro novo, o computador, a televisão, o churrasco com os amigos (onde ela prepara tudo e ele acende o fogo, fica meia hora e volta à cervejas e aos amigos) e, como sempre, o futebol. A companheira, bem, essa recebe a mesma atenção que o último aspirador-de-pó comprado nas Casas Bahia e que veio com defeito.
Mas, elas nos observam enquanto somos tudo isso. Mulheres têm outras expectativas com relação aos seus homens. Esperam muito mais deles que o de simples provedores das necessidades básicas da família. Deixaram há muito de ser esposas profissionais, quando a sociedade assim permitiu. Transformaram-se em companheiras, com todas as exigências e prerrogativas do cargo e por isso nos prestam tanta atenção. Esperam que sejamos fiéis, amantes dedicados, observadores de seus cabelos, unhas, langeries, gestos e bocas; no entanto, nos desejam cegos à inexorável ação do tempo sobre seu semblante - a vaidade feminina está acima de qualquer julgamento dos mortais. Desejam beijos de boca e todos os outros; solicitam ser amadas de várias formas, mas sempre com delicadeza; clamam por respeito e pelo reconhecimento de suas outras qualidades, sejam estas quais forem: desde uma roupa bem passada, aos cuidados com os filhos ou a conduta na vice-presidência de uma grande empresa. Não importa em que patamar esteja, ela será sempre uma mulher a desejar a atenção do seu homem, traduzida em gestos simples, que apenas representem que ela é observada e amada.
Mas, como isso quase nunca ocorre, a mulher nos vigia e vê sempre o que não deseja na sua relação: o contrário, o lado oposto dos seus sonhos. E se decepciona e sofre muito. E aí, começa seu processo de aceitação da perda do sonho feminino, qual seja, o de ser feliz com o príncipe eleito, que, afinal, não era tão encantado assim. Nesse processo, ela acaba por matar as últimas réstias de esperança, definindo sua desistência da relação. Daí pra frente, ela apenas elabora o luto com antecedência; e na hora certa, comunica ao ex-consorte que a coisa toda acabou. Ele se desespera, xinga, grita, acusa-a de fria e desumana e demonstra claramente que não entendeu nada. Esse último ato de cegueira e intolerância equivale à pá de cal para que os restos da relação sejam devidamente desinfetados e não padeçam do mau-cheiro das agressões mútuas. Definitivamente, ele está morto e não sabe.
Mas, como no câncer, a prevenção é tudo. Antes de se chegar ao diagnóstico da irreversibilidade, um longo caminho pode e deve ser trilhado. É só um querer olhar pro outro com um pouco mais de atenção, que as imagens começam a aparecer. Mágoas, deslizes, decepções, intolerâncias, reclamos, angústias, medos, sofrimentos silenciosos, todos vão desaparecendo, vagarosamente, após cada conversa no jantar, cada diálogo na cama, cada desculpa aceita, após cada sorriso arrancado. Poucos homens me lêem, o que nesta hora é bastante lamentável. Hoje, eu acredito que toda relação é renovável. Não é o tempo que afasta as pessoas, mas sim o que se faz durante o tempo em que se está com as pessoas. Rotina boa não é rotina: é vida boa. Para recuperar a felicidade nas relações, não há milagre nem sonho. Carece apenas do desejo de viver, com a companheira, a vida como já se desejou, um dia.
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quarta-feira, novembro 03, 2004
Perdas ou Ganhos?
Ah, como eu gostaria de saber mais do mundo e da vida, só pra ter em mãos o poder de ajudar a diminuir as mazelas que tanto afligem as pessoas, principalmente os amigos, esses seres tão amados. Mas, não me é possível tal proeza; é pretensão exageradíssima, principalmente para quem quase perdeu o rumo, por conta do abandono imposto à companheira de quase 20 anos. Não, definitivamente eu não seria o mais indicado para salvar o mundo, no todo ou em parte. Mas sou muito do metido à besta, isso sim. E aí, diante de algumas questões absolutamente tentadoras, nascidas de brilhantes e adoradas cabeças que por aqui costumam dar as caras, não poderia eu, pretensioso como sou, ficar de lado, encolhido e alheio, que nem político re-eleito.
Duas questões me eriçaram os pelos nos dias recém passados. A primeira, um recadinho da genial Mariza sobre o post anterior, e que diz assim:
"(...) eu queria poder entender algumas coisas, e uma delas é o crescimento acompanhado de perdas; perde-se a ingenuidade, perde-se a capacidade de amar incondicionalmente, entre outras coisas primordiais."
Bom, eu não sei se consigo explicar o que essa moça brilhante almeja. Contudo, começaria por dizer que a vida não admite perdas, e sim, apenas ganhos. Isso pode soar estranho, muito estranho mesmo. Porém, ao considerarmos um outro referencial (a cada dia mais aceito) qual seja, o de que a existência é contínua e interminável, poderemos então transformar tudo aquilo que temos como perdas, em um outro patrimônio de vida, o qual poderemos rotular de ganhos ou seja, créditos, pontos acumulados, milhagens para as próximas travessias. Ao contrário do que possa parecer, isso não é falácia. A pluralidade de existências, tão defendida por Allan Kardec em suas obras, já é considerada por muitos como uma possibilidade científica a ser atentamente observada, pesquisada, e até aceita, em certos meios acadêmicos. Como não sou religioso, não falo de religião, apenas de ciência. Supondo a possibilidade científica de voltar a esta vidinha, com minha milhagem guardadinha na mala, o que vier, nessa existência, será lucro. Eis o conceito básico. Na verdade, a expressão "crescimento acompanhado de perdas" talvez seja contraditória em si mesma, pois nada cresce sem algum ganho. Nós, que nos acostumamos desde cedo ao acúmulo de riquezas como forma de quantificação de "ganhos" (sempre associado a alegrias nos lucros e a tristezas nos prejuízos), quando passamos por experiências que nos retiram algo, que não nos deixam "lucro", ou que nos fazem tristes, imediatamente fazemos a correlação biunívoca entre as duas coisas: tristeza é igual à perda e vice-versa. Então podemos concluir, por este raciocínio, que nada do que nos deixa tristes representa, obrigatoriamente, uma perda e si.
As outras questões, talvez até mais interessantes, referem-se à perda da ingenuidade e a amar incondicionalmente.
Muito bem: perda de ingenuidade é, na verdade, o ganho da experiência ao longo do caminho. Mais uma vez eu não consideraria como perda o distanciamento da infância (lugar onde costumam morar a inocência e a ingenuidade), que cede lugar à juventude, com todas as cargas "elétricas" e eletrizantes que essa fase nos traz. Acho que não perdemos nada. Apenas trocamos a ausência de preocupações de responsabilidades, por um outro momento, quando passamos a pagar o caro preço por nossas ações voluntariosas e arrojadas e por nossa afoiteza, ou pela coragem desmedida, que por muitas vezes é inteiramente desmiolada... E é justamente aí que está o ganho, no preparo do nosso íntimo para o receber daquilo que a vida pode nos proporcionar de melhor.
Já o ato de amar incondicionalmente, esta sim, é a melhor forma de amar, é o amor em sua melhor forma. Não depende de ninguém gostar da gente, de tratar-nos mal, bem, ou melhor; é o amor do cão pelo dono, da mãe pelo filho, da tiete pelo ídolo. É o amor grátis, que está sempre na melhor promoção. É o coração absolutamente livre de qualquer impedimento e que pode bater por quem quiser, o quanto desejar e pelo tempo que durar. É esse o amor que salva as relações, detém os suicidas, recupera os desesperançados. É o amor salva-vidas. E o que é melhor: é apenas uma opção nossa, praticá-lo. Mas a Mariza sabe disso; ela só estava brincando.
Ah, mas como eu disse antes, duas foram as questões que me eriçaram os pelos. A outra, fica pra próxima.
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